enti no meu rosto o primeiro raio de sol que se insinuou através da cortina. Olhei pelo vidro a paisagem, que a primeira instância não reconhecia. Ao meu lado, a mulher que dormia já não mais estava, havia chegado, de certo, ao seu destino. O frio era intenso e pela janela se percebia que já havia alguns dias que o sol não se despia. Coberto de nuvens o céu se fazia. E pela estrada o que se via era uma gente pobre, vendendo frutas típicas da região, envoltas em casacos que nada protegiam, ou simplesmente em cobertores que nem sequer o corpo deles cobria com propriedade. A paisagem passava como um filme. Um filme de guerra que mostrava um país pobre e seus desabrigados; uma paisagem seca e mórbida como é a vida daqueles que sofrem de fome, de revolta. Era aquela viagem a mais longa de toda a minha vida.
Naquele ônibus, eu simplesmente seguia... Procurava um novo caminho, um lugar feliz onde eu pudesse recomeçar a minha vida. Tudo que trazia comigo era uma maleta velha, já muito antiga, e por isso, pelo tempo castigada; algumas mudas de roupa, dois reais trocados, um estômago vazio e um nó na garganta arrochado. Havia muitas crianças naquele ônibus e todas elas sorriam e brincavam felizes (cada uma de acordo com a sua imaginação). Um homem fumava um cigarro na janela, e uma moça, à minha frente, chorava. Havia ao lado dela, alguém que a consolava.
Olhei novamente através do vidro e a velha paisagem continuava. Repetindo-se em seus espaços de formas diferentes, mas levando sempre consigo a característica do retrato triste da região. Minha esperança era logo chegar ao lugar onde iria morar: Um lugar com pessoas felizes e uma paisagem bonita para nela a vista se descansar. Teria passado enquanto dormia? Só o destino saberá... Se passou, então esse não era o meu lugar.
– Eu posso sentar? – Cutucou-me uma moça gorda, que quando vi, quase cedi o meu próprio lugar, o da janela, onde, como sempre, costumava me sentar. Eu sentia constantemente, na viagem, muita vontade de ir ao banheiro e se ela sentasse ali, ao meu lado, com certeza não sairia mais do seu lugar e eu, obviamente, não poderia sair também para satisfazer minhas necessidades. Não que eu estivesse culpando o grande espaço que aquela moça iria ocupar, muito menos o seu excesso de gordura, que contribuía para a dificuldade em tudo aumentar, mas sim o espaço entre as poltronas que, de modo egoísta, não permitiam os gordos de sentar. Cedi meu lugar:
– Sente-se aqui. - eu disse.
– Obrigada. - respondeu a gorda - Adoro mesmo a janela. - Completou depois que me levantei e ela, conforme hipotetizado, com grandes dificuldades, ter conseguido se sentar.
Acomodei-me ao lado da gorda simpática, que insistia em conversar. Nos primeiros minutos sua simpatia era conveniente, depois de alguns segundos começou a incomodar, ao completar de uma hora tornou-se insuportável e depois de uma hora e vinte, eu já queria ter à minha volta algo que servisse para tampar sua boca maldita.
Eu, que há muito tempo respondia com monossílabas tônicas tudo o que me perguntava, e sorria sem graça, pela simples obrigação de não deixá-la com maus pensamentos ao meu respeito, resolvi me levantar:
– Olha... Preciso ir ao banheiro, estou um pouco apertado, eu volto já. - Saí na certeza que o meu “volto já” era NUNCA. Fui ao banheiro. Abri a porta, sentei na privada, respirei e comecei a chorar. Eu partia sem destino, sem saber no que minha vida iria se tornar, estava com fome e só tinha alguns trocados. Chorei também porque havia aturado uma gorda estúpida que falou ao meu ouvido durante uma hora e vinte sem nem se quer me dar uma pausa para descansar.
As lágrimas que se desprendiam sem parar inundaram meu rosto e espatifaram-se no chão do minúsculo banheiro daquele ônibus que partia nas estradas muito frias daquele lugar. Depois de ter chorado tudo o que queria, olhei-me no espelho e vi que meus olhos estavam vermelhos. Pressionei a torneira e lavei meu rosto, enxuguei-o com o papel que havia por lá.
Sentindo-me mais recomposto, saí do banheiro. Vi que alguém ansiosamente esperava na porta: Era uma mulher que se contorcia, esperando sua hora de entrar. Lembrei-me então que não havia enxugado as minhas lágrimas e o pouco de água que deixei no chão se espatifar. Ao sair, ela não hesitou. Olhou para mim e criticou: - Podia ao menos ter balançado para dentro do vaso! - Saiu endiabrada. Eu pensei: - Que estúpida... Não podiam ser lágrimas?
A viagem prosseguia e eu, que agora estava sentado na parte de trás daquele ônibus, longe daquela gorda faladeira, continuava vendo a paisagem. Pensava várias coisas, dentre elas que tinha saudades de casa. Também pensava em minha avó, mãe de meu pai, que havia perdido há alguns anos e que era, para mim, uma das melhores pessoas que já havia habitado no mundo. Pensava no quanto ela me amava e no quanto eu a amava também. Relembrava a minha infância em sua casa, quando ela fazia seus doces e, dentre tantas outras coisas, as minhas vontades.
Era uma senhora bonita, parecia uma estrangeira, tinha olhos claros, cabelos bem louros e um tom de pele que era quase inexplicável. Adorava ir à igreja, onde cantava... Como um anjo ela cantava vestida numa bata branca com detalhes em vinho. Sentia-me orgulhoso de vê-la entoando hinos. E enquanto cantava, eu a imaginava fazendo solos como as cantoras negras dos Estados Unidos. Eu adorava ir aos cultos com ela. Na verdade, gostava de brincar na escadaria durante os cultos, mas gostava também de “ouvir A Palavra Divina.”
Nós sentávamos sempre no penúltimo banco do lado direito. E ali ela orava. Eu não entendia direito, mas baixando a cabeça fazia reverência enquanto a oração o pastor entoava. Entre orar e cantar eu vasculhava sua bíblia para ver o que guardava. Dentre fotos da família e a pena de um pássaro, estavam escritos os salmos - os que ela mais admirava - e dentre eles, também, os hinos - os que ela cantava.
Quando saíamos daqueles cultos e nos despedíamos dos “irmãos”, como de costume, quase que de praxe, um grande almoço nos esperava em sua casa. Quase sempre a família reunida em volta de uma mesa de antigas tábuas, onde todos, de uma só vez, conversavam. Sorrisos, abraços, piadas... Tudo muito alegre. E ela com isto ela se esbaldava.
– Moço, está se sentindo mal? – Perguntou uma senhora que me acompanhava naquele ônibus desde sua largada.
– Não - respondi engasgado. - Está tudo bem, obrigado.
A senhora achou que eu estava com fome e, solidariamente, me ofereceu um sanduíche que lhe sobrara:
– Tome. Está um pouco frio, mas está bom. Foi feito hoje cedo.
Agradeci sem contestamentos. Não chorava pela fome, mas era certo que a sentia. Em meu estômago nada havia e eu de fato precisava me alimentar:
– Obrigado.
Não contente ainda, ofertou-me dez reais. Este, até por complacência tentei recusar, pois vi que era muito humilde e que, por ser dona de casa, mais que eu, ela iria precisar. Mas ela retrucou veementemente e disse:
– Aceite filho, é de coração!
E eu aceitei. Ela me deu um sorriso e me disse:
– Tenha força! Tudo passa nessa vida, tudo passa. Há pessoas que sofrem muito, mas há sempre as que sofrem mais. Não há dificuldade nesta vida que possa ser maior que a sua vontade de vencê-la. Por isso, lute e jamais desista de sua caminhada.
Achei bastante curioso o modo como aquela senhora me falou. Falava como se soubesse tudo o que eu estava passando ou sobre o que eu viria a passar no futuro. Pensei se não seria ela um anjo enviado por Deus que aparecera naquele instante para me aliviar. Tal como acontecera num filme americano, o “It’s a Wonderful Life”. Fiquei pensando. Desci na outra estação...
Havia muitas pessoas por lá. Um homem que vendia sapatos gritava “é de couro legítimo”. O garoto do cd anunciava. Witney Houston cantava o brega sucesso de “O Guarda Costas” pelas caixas de som da rodoviária. A lanchonete estava cheia e o melhor que se podia comer por lá era um velho e duro pão com mortadela acompanhado de um caldo de cana. Tudo estava com uma cara muito ruim, inclusive o pão com mortadela, mas sem rodeios fiz questão de comer, era justo o que o dinheiro dava.
Ainda comendo, ouvi alguém anunciar a chamada para o ônibus que partiria nos próximos cinco minutos. Pedi um saco ao balconista e guardei os quatro ou cinco pães que havia comprado no precinho promocional da lanchonete barata, e novamente no ônibus me fiz entrar. A moça gorda continuava lá e, ao me ver, indagou:
- Vai sentar aqui?
Eu simpaticamente respondi:
– Não, eu vou pra lá.
Só mesmo louco para sentar ao lado daquela mulher que não parava de falar. Ao caminhar no corredor, observei as pessoas que estavam sentadas nas poltronas: Algumas dormiam, outras comiam deliciosos hot-dogs encharcados com um molho de tomate. Uma senhora auxiliava seu filho a vomitar e uma mulher pretensiosa saía do banheiro deixando elegantemente um grande fedor ao me cruzar.
Sentei-me na poltrona e rapidamente tentei abrir a janela que em hipótese alguma quis me ajudar. Continuei forçando, mas era inútil: O ônibus era daqueles em que todos são obrigados a aceitar o ar-condicionado ou aquecedor ligados e a, portanto, permanecerem em seus lugares, aturando, inclusive, o cheiro fétrico da merda daqueles que deixam para cagar nos banheiros dos ônibus quando vão viajar. Não tive alternativa, tive que suportar.
O ônibus partiu e na frente não havia mais lugar. A não ser, é claro, aquele próximo à gorda falastrona, onde, evidentemente, em hipótese alguma, eu iria me sentar. Entre aturá-la e aturar aquele cheiro insuportável, preferi, é claro, o cheiro insuportável, pois, entre os dois, era o único que certamente em algum momento iria cessar. Continuei a viagem ao lado do fedor que aos poucos, conforme esperava, se fez amenizar. Permaneci observando a paisagem, que em alguns momentos me fez enjoar. No decorrer das horas e ao ficar muito escuro e tarde, senti muito sono e adormeci sem saber onde ia chegar.
Sonhei que estava no paraíso: Uma bela praia, e uma casa com piscina. Havia muitas crianças e logo me dei conta que todos eram meus filhos. Um verdadeiro time de futebol. De um gramado muito verde e muito bonito, vinha ela, a minha esposa, correndo para me abraçar. Levantei-me para recebê-la em meus braços e ela, de braços abertos, continuava a se aproximar...
– Filho da puta! – Gritou o motorista após uma longa e estridente buzina, seguida de uma freada, depois de uma carreta ultrapassar.
Era possível que até os meus sonhos pudessem estragar? Sim, era, a essa altura da vida e de meus problemas tudo era possível, até mesmo aquela gorda se levantar e vir em minha direção. – O que aconteceu neste exato momento – Ela vinha e olhava para mim e chegando perto sorriu. A cena deste “thriller” me enlouquecia e me deixava cada vez mais tenso à medida em que ela ousava se aproximar. No entanto, logo tudo aliviou: Percebi que o objetivo dela era o banheiro e não vir encher os meus ouvidos como imaginava. O que para mim, por alguns segundos, foi um alívio, tornou-se em seguida um pesadelo novamente, pois sabe lá Deus o que ela fora fazer ali dentro.
Se um ser, de menor porte, que teoricamente se alimentaria bem menos que ela, a alguns momentos atrás conseguiu fazer no ar um estrago... Avaliando aquela gorda, vi que seria uma catástrofe se ela resolvesse seus restos fecais ali despejar. Após esta dedução, virei-me para o lado e pedi a Deus que fosse líquido o que ela estivesse fazendo por lá. Pedi com toda fé que tinha, pois se fosse sólido, ou um outro pastoso, eu me recusaria... Recusaria-me a continuar a viagem. Pediria ao motorista para parar!
Felizmente não era sólido o que ela teria deixado por lá. Pelo tempo e pelo cheiro perfeito, sem qualquer distorção de odor no ar, percebi que era líquido o que ela fora despejar. Depois de tanta interferência e abalos psíquico-emocionais, quis sonhar novamente. Tentei durante horas sem obter sucesso algum. Desistindo, continuei a observar pela janela. Sentia muito frio, o ar estava gelado e meu casaco não podia suportar.
Retirei de minha pequena maleta uma camisa de mangas compridas feita de uma malha um pouco mais grossa, que de fato não iria me esquentar, mas que certamente iria amenizar o frio que estava sentindo naquele momento. Não estava preparado com roupas de frio, pois a região de onde vinha era muito quente, poucas vezes baixava tanto a temperatura em algum lugar. Enfiei-me na camisa do modo que estava. Cobri minhas mãos com seus punhos e as escondi debaixo dos braços para esquentar.
Olhei novamente pela janela e vi os carros passando. Nas luzes fortes que saíam dos faróis, me dispersei. Fiquei pensando que caminho agora eu iria tomar. Não me envergonharia –eu disse – de nada na vida e nem de onde fosse trabalhar. Qualquer trabalho serviria, desde que, com isto, eu pudesse, de algum modo, me sustentar. As lágrimas escorriam pelo rosto e eu me punha a enxugá-las. O ônibus continuou e eu viajei pela estrada, sem saber aonde chegar.
A paisagem mudou a cada jornada diária. As pessoas saíram, o ônibus parou, alcançou a sua chegada. Num ferro velho eu desci, não pude mais continuar. Havia enfim chegado ao meu destino. Não muito longe havia uma estrada. Nela, procurei um lugar: Encontrei um caminhão-baú abandonado de onde fiz a minha casa. Arrumei algumas plantas para deixá-lo um pouco mais elegante e, como todos os dias, continuei relembrando essa história. Viajando longas horas ao por do sol no horizonte de uma estrada que eu bem sabia de onde vinha, mas não sabia aonde ia chegar.