O grande relógio da sala já marcava três e quinze. Jorge, sentado na poltrona, com as pernas cruzadas, cobertas, em cima de um banco, e de óculos na mão, já não mais lia. Somente passava os olhos enquanto pensava. Na lareira, quase que de frente à sua poltrona, labaredas crepitantes o ambiente aqueciam. Por duas grandes janelas, que ficavam lado a lado da lareira, cada uma, se via o cair da neve que se dispersava pelo pasto verde o cobrindo e o tornando quase que um tapete branco.
Enquanto Jorge observava a imagem, chegou então Isabelle com o costumeiro chocolate quente que aquecia sempre aquelas tardes frias que antecediam o início de uma nova estação.
- Obrigado – Disse Jorge, tomando nas mãos a sua xícara.
- Estás chateado?
- Não, Isabelle. Apenas pensando.
- Você pensa muito, Jorge.
- É preciso, querida. Os Homens todos deveriam pensar, mas nem sempre isto acontece.
- Fala isto de mim?
- Não, não de você, eu falo dos outros.
Jorge levantou-se da poltrona, pegou o cobertor que a momentos atrás esquentava seus pés e o colocou sobre as costas. Seguiu para ver a paisagem branca pela janela. Isabelle, com um leve sorriso, deixou na mesinha de centro o chocolate e caminhou em direção a Jorge. Depositou sobre seus ombros suas mãos já velhas e cansadas. Abrançando-o contra o peito, observando a paisagem, indicou ao longe, um velho jipe que, em alta velocidade, aparecia no sobe e desce das montanhas de neve. Jorge simplesmente viu e dispersou:
- Deve ser visita para o Scott, sempre chegam nesta época do ano.
- Parece apressado.
- Vem da cidade, disse Jorge.
Isabelle continuou à janela, mas um pouco depois também dispersou:
- Há muito tempo não temos visitas, não é Jorge? Parece até que se esquecem de nós.
- Isto é comum aos velhos. Ainda mais aos que não são milionários.
- Às vezes sinto uma tristeza muito grande, sabe, Jorge?
- Ora, minha velha, não tenha pena de si... Não tenha! Nós não devemos ter pena de nós.
Jorge tirou um lenço do bolso e emprestou-o a Isabelle que enxugou uma lágrima que insistentemente escorria pelo rosto. O barulho de jipe então se aproximou e foi ficando forte. Até que quando esteve muito próximo, ouviu-se uma freada brusca e o carro desligou... Ouviu-se o barulho da portas batendo. Jorge e Isabelle se olharam. Inteiramente surpresa Isabelle indagou:
- Para nós?
- Espere.
Jorge assustou-se . Foi à parede da frente e retirou o fuzil que havia no suporte com a certeza do que faria caso invadissem a casa. Abriu a gaveta da cristaleira ao lado e pegou alguns cartuchos de pólvora, enfiou dois no cano da arma e andou apressado para a porta que, antes dele chegar, com um golpe de pé se abriu. Isabelle assustou-se e Jorge apontou a arma. Surgiu na porta um homem alto de jeans, casaco e camisa branca, com uma mulher em seus braços e uma criança ao lado.
Preparado para o tiro, Jorge hesitou em apertar o gatilho quando viu a imagem da mulher sobre os braços do homem que vorazmente adentrara o recinto. A menina de olhar tristonho e cabisbaixo olhava fixo para Jorge, que quase imóvel foi baixando a arma retirando o dedo do gatilho.
- Por favor, senhor - disse o homem – desculpe meu desespero. Minha esposa está muito doente. Uma avalanche interrompeu a estrada de volta pra cidade. Precisamos de abrigo, não temos mais onde ficar. – Jorge e Isabelle foram logo os acomodar.
Já no quarto da casa de Jorge, sobre a cama e com todos em volta, estava a mulher que tremia. Com febre alta, e o travesseiro de Isabelle sob as costas, ela gemia. Isabelle cuidava do pano na testa e das cobertas quentes que a cobriam.
- Há quanto tempo está com febre?
- Dois ou três dias.
- Vieram passar férias e ficaram presos...
- É, não sabíamos da tempestade. Nem imaginávamos que surgiria.
- Nesta época do ano é comum. Compramos mantimentos para meses e meses antes de chegar o inverno. As estradas se fecham e é difícil ultrapassar a neve.
- Estará melhor ao amanhecer, disse Isabelle com a ternura de sempre no olhar.
- A mamãe ficará boa, Willy?
- Sim, ficará.
- Willy é o seu nome? - disse Jorge.
- Sim. Desculpa, até agora não nos apresentamos. Sou Stuart Willy Brown. Stuart Willy.
Isabelle, que espremia o pano úmido na água quente, parou de forma anestesiada no ar. Jorge sentiu um desconforto e observou Isabelle. Após alguns segundos, retornou à Willy:
- Nós tínhamos um filho chamado Stuart Willy – disse Jorge - Morreu numa tempestade.
A menina observou Stuart e ele a ela em curta passagem. Willy voltou os olhos a Isabelle e quase sem palavras ele disse:
- Lamento.
- Nós também, disse Isabelle.
E desconfortavelmente tentando desconversar ela completou:
- A febre já baixou um pouco, ela só precisa descansar.
Após alguns segundos...
- Como se chama a garota? - perguntou Jorge.
- Sara.
- Muito prazer, disse a menina.
- Prazer, menina... – Disse Jorge sorrindo e abraçando a menina simpática ao lado de Isabelle que somente observava.
Na cozinha, minutos após, enquanto Isabelle preparava chocolate quente e todos comiam, Jorge e Willy conversavam. A pequena Sara brincava com algumas torradas enquanto comia.
- Definitivamente nós não sentimos falta da cidade. Gostamos daqui. Lá tudo é superficie. Os conceitos são muito estranhos, a forma de vida também é estranha. Há vários conceitos e formas de vida . Mas a que mais nos enriquece é a que nos propõe a entender do outro o seu valor. E isto, lá, quase sempre é impossível, porque os valores nunca estão em seus devidos lugares. Na cidade, vivemos noites frias em tempos de inverno. Aqui, vivemos sempre, noites quentes em tempos de amor. Longe de tudo que é subalterno, que nos conduz a uma visão periférica, e quase sempre promíscua, do que seja a vida. Esta visão periférica é uma das formas pelas quais podemos entender o verdadeiro valor deste calor, mas isso só acontece, quando ela muda de ângulo. É claro que não existem muitas pessoas que entendam o que é isso por aqui também. Nem no resto do mundo. Porque para isto é preciso sensibilidade. A mesma sensibilidade que deve ter um pintor ao pintar o seu quadro ou um compositor ao compor seus acordes. Mas é fato que em cada lugar existem aqueles que modificam com cores fortes a paisagem triste do quadro da vida. As pessoas são capazes disto. Embora quase sempre não a façam. No entanto, vale ressaltar: As que são mais capazes, não vêm da cidade, vêm do campo, do interior. Aqueles que fazem o mundo diferente são aqueles que dão valor às pequenas coisas que nele estão presentes. O homem do campo não tem muita ganância, ele não valoriza muitas coisas. Ele quer apenas viver o seu dia, e ter à noite o pão que o alimente no outro dia. Já o da cidade não, ele é um ser mutante, é de tudo capaz, porque quer sempre mais e mais. E o valor que teria que ter pela vida está nestas coisas. Apesar de se achar muito mais esperto, acredite, não é mais evoluído que os demais. Ele embrutece e retorna cada vez mais ao modo de vida mais rústico e primitivo que já existiu na face da terra. Transformando-se em um verdadeiro animal. Por isso nós fugimos da cidade. Por causa dos malefícios que a visão do homem de lá conseguiu nos causar. Nós perdemos um filho numa tempestade de guerra que veio do mar: Os aviões passavam, pessoas corriam, as bombas caíam, muitas delas, sem parar... O Fogo ao longe, tudo em volta destruído e o nosso filho a nos clamar... Quando chegamos era tarde. Tinha morrido: Uma bala no peito, um braço amputado. Sirenes em volta, alarmes soando, pessoas correndo e os aviões no ar...
Isabelle parou de mexer a panela e encheu as xícaras com o chocolate quente. Em seu rosto via-se o sofrer pelo escutar. A menina Sara tinha feito casinhas de torradas e esperava ser servida por Isabelle para então as derrubar. Com os olhos marejados, Willy ficou sem jeito e olhou para Sara que continuava a brincar. A menina percebeu a atenção de todos para ela por entre as frestas das casinhas que construía, e após alguns segundos de observação e dúvida, ela disse:
- A casa de Jorge... Quando ele morava lá. – E derrubou as casinhas...
Todos sorriram nervosos e emocionados com a inocência da criatura e terminaram mesmo por gargalhar. Em sua ingenuidade e atitude, conseguiu a menina deixar um pouco de lado o sofrimento daquela noite fria de inverno para conhecer e compartilhar o amor entre os homens, que já surgia mesmo antes de um novo dia chegar.
Os visitantes permaneceram na casa de Jorge e Isabelle até o amanhecer. Quando o sol incidiu na janela, Mary Ane vagarosamente despertou. E abrindo os olhos, percebeu o quarto, viu Sara e Willy atirando bolas de neve pela janela e caminhou para encontrá-los. Quando todos retornavam, avistaram Mary Ane abrindo a porta da casa. Neste momento todos se olharam e saíram correndo apressados pela neve indo ao encontro Mary, que sorrindo ficou a os esperar. Abraçando-se todos se puseram a comemorar.
Naquele dia feliz, um grande almoço e muitas histórias felizes os fizeram se emocionar. Tornaram-se quase uma família e, unidos, sempre encontravam-se à noite na sala de estar, onde Jorge lia seus contos para todos escutarem. Defronte à lareira, sentados no chão, os visitantes experimentavam aquilo que Jorge chamava de verdadeira comunhão. Willy, Sara e Mary Ane descobriam, aos poucos, o valor das coisas pequenas, que são capazes de mudar, da humanidade o destino quando a elas se dá valor. O nascer do sol, o cantar dos pássaros, o cair da neve, o abaixar das nuvens tinha para eles agora um significado diferente. Um sentido especial. Muito menos apurado que o de Jorge certamente, mas muito mais valorizado que o de qualquer outro homem da cidade que considerasse a sua rotina diária o único valor de seu caminhar.
Obviamente Jorge sabia que o homem é Homem e possui as necessidades do homem da época: o cidadão. Mas, para ele, a vida magnífica era a do homem que vivia no campo, ou mesmo na montanha, onde havia se instalado, pois havia provado o quanto de valor e entendimento humano tem este a mais que qualquer cidadão. “O calor de quem não se conhece é apenas o calor de um ser que ainda não se permitiu por nós ser amado. E não é isto uma questão de encontro. É apenas uma questão dos pequenos valores que impedem e permitem sempre o nosso querer.”, repetia Jorge, quase que como num provérbio para si mesmo diante de toda a nova situação. E refletindo nisso, continuava e acerca de sua história declamava - “A guerra somente acontece porque os homens não entendem os valores da vida. E não é isto uma questão querer é apenas uma questão de se permitir estar em comunhão.”
Longe da cidade, os visitantes experimentavam um pouco mais de humanismo e aprendiam um pouco mais sobre a natureza da vida que conseqüentemente os fazia entender o que era ser um homem e um cidadão. Ao passar de alguns dias a neve derreteu e logo Sara, Willy e Mary Ane deveriam retornar. Jorge e Isabelle gostaram tanto da companhia que insistiam para todos eles permanecerem. Mas a vida dos visitantes estava presa ao ruir dos carros, à fumaça preta e ao frenético-constante caminhar das ruas e praças, mercados e shoppings centers que as as grandes cidades os oferecia ao despertar de cada novo dia, logo pela manhã.
E no fim da última tarde naquele lugar, estavam todos prontos para viajar. Sentimentos expostos eram recíprocos e estavam todos reunidos na despedida dos presentes em seus abraços apertados de adeus:
- Adeus, Jorge. Voltaremos um dia a nos encontrar, disse Willy.
- Adeus Mary, foi muito bom o tempo em que estiveram por aqui, disse Isabelle...
Jorge, emocionado, saiu dos braços de Willy e ajoelhou-se para Sara nos seus aconchegar. A menina prometeu fazer várias casinhas de torradas à hora do lanche e do jantar, onde quer que estivesse, para deles relembrar. Sara, Willy e Mary Ane saíram para à cidade retornar, sabendo sim, que seus corações não seriam os mesmos depois das noites quentes em pleno inverno que haviam passado naquele lugar. Isabelle saiu da porta primeiro e chorou na cozinha disfarçadamente para que Jorge não pudesse escutar. Ao retornar, com chocolate quente para ambos, foram pra a janela para a partida deles observar. Tristemente Jorge disse:
- Pobres homens da cidade! Saberão o valor verdadeiro das coisas? Algum dia será que vão relembrar ou aprender? Todos os homens deveriam se amar e sobre isto deveriam pensar, mas nem sempre isso acontece.
- Fala isto de mim, Jorge?
- Não, não de você, eu falo dos outros. Você sempre compartilhou comigo o valor verdadeiro, sempre fez disto o seu propósito de vida... Há muitos anos que você ensina o que é amar. E ainda me traz o mesmo chocolate todos os dias. O mesmo chocolate, sem tirar nem pôr.
E da janela ambos sorriram abraçados, com o chocolate quente em uma das mãos, olhando a paisagem branca que pela vidraça exibia os flocos brancos que caíam, enquanto o barulho e a imagem do velho jipe se afastavam e à cidade retornavam, se despedindo de suas vistas por entre as montanhas.
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