Frederico, o louco
Certa noite, de uma semana qualquer, caminhava tranquilamente pelas ruas da cidade, quando ao passar por um beco, me deparei com ele: Frederico, o louco. A criatura me surgiu de trás de uns destroços que bem poderíamos chamar de lixo, sucata, depósito dos restos mortais dos móveis e eletrodomésticos desprezados por todos os moradores da rua. Um carro de polícia passava antes deste momento e logo após surge ele, com olhos arregalados, olhando para os dois lados, como quem foge de algo.
Ao confirmar que tudo estava tranqüilo, resolveu sair: Colocou as mãos nos bolsos e se pôs a caminhar sem propósito. Assobiava uma música e olhou para o céu. Esticou os braços, espreguiçou-se e começou a fazer exercícios físicos de forma totalmente desarticulada e sem nenhum nexo nem função consequente ou expressiva no corpo. Repentinamente ouvimos um barulho estranho: O caminhão de lixo dobrava a esquina. Frederico parou por um instante e muito lentamente abandonou sua atividade aproximando o ouvido para o lado da rua.
À medida em que se aproximava, ele teve a certeza de que era o caminhão de lixo e rapidamente correu para trás dos destroços gritando apenas "Não, Não... Vocês não podem fazer isso comigo!!! Não podem fazer isso comigo, não podem!!!" E ao sumir, ouvi de longe apenas a barulheira de quem procura algo dizendo "este não serve... é pequeno demais...".
Qual não foi a surpresa ao ver Frederico surgir novamente com uma vara de ferro gigantesca com que pretendia bater nos lixeiros, caso se aproximassem. E assim não teve dúvida: Quando o caminhão parou, e alguns de seus garis começaram a descarregar mais algumas velharias e destroços, Frederico começou a xingá-los ameaçando "cobrir de porrada" todos aqueles que ousassem "sujar" o seu recinto.
Qual tentativa inútil foi a dele, visto que os garis continuavam o serviço sorrindo e zombando da cara de Frederico. Ao terminarem o serviço, subiram de volta ao caminhão e ao partir deste, jogaram no meio da rua uma boneca inflável (destas de sex shop) gritando "Pra te fazer companhia" E aos poucos, desapareceram sorrindo.
Frederico saiu correndo para o meio da rua e pegou a boneca sobre seu colo. Acariciou-a com sentimento e chorou. E como quem leva um corpo nos braços, ele a conduziu para atrás dos destroços. Eu a tudo assistia impressionado. Fiquei mesmo por observar toda a cena, visto que me prendia a atenção de forma emocionante. Ao tentar me aproximar, curioso, para ver o que acontecia atrás dos destroços, dei de cara com ele, que novamente saía. Ele parou por um instante, me encarou como quem não sabia se me conhecia, e assim permaneceu durante um tempo. Então, passados alguns segundos, começou a conversar como que de mim também não tivesse fobia:
- Você sabe há quanto tempo eu estou aqui? Há mais de dez anos... E até hoje eu não entendi o porquê da ação de certas pessoas. São tão estranhas... Muitos estranhas! Este lugar é estranho. Tem horas que eu tenho medo, sinto alguma coisa me sufocando...
E num repente ele mudou:
- Mas depois eu durmo e não vejo mais nada.
Percebi que havia uma necessidade de fala naquele momento. Então sorri e sentei num banco de três pernas que catei do lixo. E ele continuou, como quem estivesse num consultório, ou como se fosse eu, um seu amigo. Pegou uma velha panela que estava sobre um armário, também em nada novo, e com uma colher começou a raspar o fundo, que a meu ver, não continha nada. Continuou me falando ao seu respeito e eu o ouvia admirado:
- Às vezes eu me lembro do meu tempo de infância. Do meu pai, minha mãe... Eu brincava o dia inteiro naquela rua...
Falava isto em tom emotivo. Mas não se deteve por muito tempo e mudando rápido de postura me disse:
- Olha, eu não sou de todo pétalas, mas também não sou espinho! Eu tenho um coração e ele pulsa: tundum... tundum... tundum... tundum, tundum, tundum, tundum... (E se assustou neste momento) - Eu acho que estou ficando doido... Doido, doido, doido, doido... Mas eu não sou maluco! As pessoas acham que doido e maluco é a mesma coisa, mas não. Doido é doido e maluco é maluco!
Eu, na verdade, me divertia com seus trejeitos e com a seriedade e facilidade com que falava e mudava de assunto. Parecia-me interessante a forma com que vivia suas emoções. Num estante estava emotivo e em seguida mudava tudo, estava revoltado, indignado com a vida. Então, logo após este tom de protesto, ele me disse em tom de segredo:
- Tem uma moça que passa todo dia na esquina lá de casa. Ela é estranha. Psiu... Escuta... Estão fazendo um barulho na árvore. Pode ser um animal peçonhento e asqueroso, ou um ser humano!
Desesperadamente ele correu para trás dos destroços de forma tão desastrada que somente consegui ouvir de longe um barulho infernal de latas caindo, desabando sobre ele. Não agüentei e abri uma vasta gargalhada ao vê-lo sair com uma mão afagando a cabeça e de olhos fechados dizendo:
- As luzes! Onde estão as luzes? Não vejo nada.
E prosseguiu desesperadamente:
- Eu estou sozinho no escuro e não vejo nada... (e num repente, abrindo um dos olhos...) - Uma luz? Há uma luz?
Olhou para mim com um ar feliz e confirmador:
- Há uma luz! Rosa, azul, branca e verde... (gesticulando quase que como imitando uma bailarina) - Amor, beleza, paz e esperança. (e mudando de tom, novamente como quem conta um segredo:) - Tem uma moça que passa todo dia na esquina lá de casa. Ela é muito estranha... Ela rouba o chocolate das crianças. Você já imaginou alguém que rouba chocolate de criança? - ele me disse.
É um absurdo, absurdo, absurdo, é um absurdo! Absurdo isso... Absurdo!
Obviamente eu não sentia vontade nenhuma de me pronunciar, mesmo porque ele não deixaria. Sua ânsia de desabafo me parecia tamanha que eu somente assistia. E assim ele ia: Contestando e protestando sobre a vida, o chocolate, a mulher e as crianças. Num momento qualquer desta conversa, ele parou e começou a farejar como se fosse um cachorro. Ficou de quatro e assim caminhava pelo chão e fungava como se realmente fosse o animal: Rosnava, mostrava os dentes, levantava a cabeça, como se fossem as orelhas, a colocava para um lado, em seguida para o outro e assim ele parecia escutar, escutar... Até que num repente tomou novamente forma de homem e me disse:
- Estou sentindo um cheiro estranho... Algo que fede. Igual ser humano.
Neste momento correu para trás dos destroços de onde saiu em seguida com uma peruca branca que parecia com as usadas pela nobreza do séc. XIV. Sentou-se diante de um barril de petróleo e com um martelo de borracha começou a bater na tampa do mesmo protestando:
- Cheiro de falsidade (bateu), - Cheiro de traição (bateu), - Cheiro de corrupção (bateu), - Cheiro de maldade! (E num repente...) - Ai, meu peito, ele dói... (dramático) Quando um sentimento embotar o seu coração e o aprisionar com suas armas, liberte-se, liberte-se! Não deixe que ele o contamine por completo, que ele o contamine por completo, contamine por completo, Não!
Eu sorri neste momento e demorei a retornar à postura de quem levava a sério, quando vi sua cara de sofrimento. Então, extremamente emocionado ele me disse:
- Eu tenho sede. Sede de justiça. Eu perdi a liberdade, eu perdi a minha vida...
Permaneceu calado durante um tempo. Mas logo em seguida aproximou-se de mim. Chegou muito perto, olhou para um lado, para o outro... E quase ao meu ouvido ele disse:
- Tem uma moça que passa todo dia na esquina lá de casa. Ela é maluca. Ouvi dizer que ela arrasta multidões... Não sei por que... Acho ela tão feia. (desesperadamente...) - Meu Deus, está na hora do remédio!
Saiu correndo nesta hora e tirou, de um outro armário lá dos fundos, uma bolsa. Derramou no chão milhares de remédios, muitos já vazios e outros tantos certamente vencidos. Procurou no meio de todos os que havia espalhado:
- Esse não, esse não, esse não... Ah, achei... (em particular comigo) São para flatos... É que eu estou com uma flatulência horrorosa...
Não sabia o que fazer neste momento, não contive uma gargalhada.
- Queria sair desse lugar - ele me disse - Ele me apavora...
Encolheu-se e escondeu a cabeça entre as pernas. Não demorou com isto dois segundos, ele pulou e disse:
- Já sei, já sei, já sei!
Agarrou um velho espelho que estava em seu caminho no qual se idolatrou dizendo:
- Ah, como eu sou inteligente... Ah, eu sou um NERD! Ninguém é igual a mim. Eu me amo!
E numa crise neurótica ele se pos a fazer perguntas às quais ele mesmo respondia se olhando no espelho:
Quer fazer sexo comigo? Não, sexo não, não estou afim. Quer fazer amor? Não. Eu não sei amar ninguém. Quer viver comigo? Não, eu não vivo mais.
Quebrou o espelho. Chorou com sentimento e olhandoem meus olhos confessou:
- Sabe aquela moça que passa todo dia na rua lá de casa, que rouba o chocolate das crianças e que arrasta multidões? Pois é, ela roubou o meu chocolate (Parou. Logo após, reflexivo e com sentimento:) - Eu não tenho mais chocolate. Fiquei sem o meu chocolate e vim parar aqui nessa cidade. (Mudou de tom) - Estranho, muito estranho!
Do nada, após a pausa dramática, desatou:
- Você acredita que eles privatizaram o inferno? Tem muito político aqui. O inferno está cheio deles. Nos dois sentidos! Privatizaram o inferno. Estavam todos lá sem fazer nada... aí, resolveram fazer política. Colocaram uma roleta na porta de entrada do inferno. Estão cobrando dez dólares por entrada! Quem não paga, queima no mármore do inferno. Mas tem que ser em dólar! Dizem que o nosso dinheiro não vale mais nada! Eu não agüento mais. Eu quero ir embora. Quero ir para o céu. Lá não deve ter dinheiro e nem políticos! Aqui, todo dia eles chegam aos montes! Políticos, bandidos, assassinos...
E calou-se profundamente... Em seguida ele disse, num tom assustado:
- Eu não quero estar aqui quando o mundo acabar... Os bandidos virão pra cá e eu não vou poder sair... O quê que eu vou fazer? (gritava) De quê que eu preciso? De quê que eu preciso? De quê que eu preciso? (e soprou num ar de cansaço, de onde, por acaso, descobriu uma solução precisa. Tornou a repetir o ato insanamente soprando então para todos os lados até que me olhando firmemente ele me disse...)
- É disso que eu preciso. É disso que todos precisam: Um sopro de vida.
Então subiu em cima de todos os destroços e de lá gritou intensamente:
Tente ser mais pétala e menos espinho.
Tente amar ao próximo e não odiar seu vizinho.
Tente ser na escuridão a luz que irradia.
Tente pensar na comunhão que o mundo tanto precisa.
E as luzes voltarão a brilhar no seu dia... Todas elas: Rosa, azul, branca e verde.
E olhando-me seriamente, quase que me convocando para subir nos destroços e ficar ao seu lado, ele disse:
Pense no que eu digo e faça o que eu faço, porque eu posso até ser doido, mas eu não sou maluco!
E soprou então para todos os lados...
Subi nos destroços e soprei junto com ele. Ao terminar, não critiquei meu ato. Apenas olhei em seus olhos e perguntei o seu nome.
- Frederico - ele me disse - Mas todos me conhecem como "O Louco". Frederico, O Louco.
Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 18/12/2006
Alterado em 26/12/2006