Expresso para o Sertão - Capítulo II
Quando saíram do hospital, vinte e quatro horas depois, Erlinda e Jacinto pegaram carona num caminhão de melancia que partia de volta para as bandas do sertão. Jacinto fez questão de acompanhá-la até em casa, embora ela insistisse para que não. Na porteira de um sitio, onde havia uma casinha muito humilde e desajeitada, eles pararam e Erlinda disse:
- Acho melhor tu voltar daqui. Meu pai pode me ver contigo e não gostar.
- Mas o que tem demais, homi? Se eu só vim deixar a filha dele em casa com segurança?
- Eu sei que não tem nada demais, mas é que o velho é valente que é o diabo! Da ultima vez que apareceu um rapaz aqui atrás de mim ele saiu foi movido à bala!
- Pois ta bem então, eu volto daqui, mas será que não tem nem como me arrumar um copo d’água?
- Oxe, e eu digo a ele que é pra quem?
- Oxe, diga nada não... Pegue a água e traga pra mim, vá... Assim eu tenho como contemplar um pouco mais a sua beleza graciosa.
- Você me deixa sem jeito quando fala essas coisas... Eu não estou acostumada!
- Bobo do homi que nunca lhe disse nada! Uma princesa assim que nem você, é muito difícil de passar despercebida! É coisa muito rara...
O velho pai de Erlinda apareceu então na varanda e, vendo-a acompanhada, gritou de lá mesmo onde estava!
- Erlinda!
- Valha-me Cristo! É o meu pai!
- Pois já que me viu, eu vou lá ter com ele uma prosa!
- Não faça isso! Vai lhe receber com o trabuco na cara!
- Pois eu vou e duvido que ele aperte o gatilho!
- Não diga duvido! Por que o meu pai é da pá virada!
- Pois eu quero ver se ele tem coragem de matar o homem que salvou a filha dele! Oba!
Ao ver Jacinto pisar em sua terra, o velho entrou avexado e voltou com uma espingarda, de cano duplo, apontando, da porta, para o coitado.
- Que diabo é isso, homi? Abaixe esse negócio, vá...
- O que você quer nas minhas terras, seu cabra de pêia?
- Oxe, eu só vim trazer a sua filha, que sofreu um acidente de trem quando ia para as bandas da capital!
- Eu não tenho fia! Essa moléstia saiu de casa sem me dar satisfação!
- Pois mesmo sem lhe dar satisfação, ela é sua filha, e eu to aqui lhe trazendo ela de volta!
- No mínimo essa fia da gota já se perdeu e tá prenha de você! E se tiver, esse fio vai nascer é sem pai! Confessa logo que tu fez safadeza com a minha fia, cabra da peste! Confessa logo, vai!
- Pois num confesso porque não tem filho nenhum e nem eu fiz safadeza alguma com ela...
- Conversa fiada! Diga então você, Erlinda... Táis com um fio dele no bucho, num tais?
- Não tô não, meu pai. Sentei em lugar quente não... O moço só me salvou no acidente de trem que virou quando ainda tava em caminhada...
- E o que é que tu foi fazer para as banda da capital, me diga?
- Oxe, meu pai, eu só ia apreciar, queria ver o lugar onde eu nasci e onde minha mãe morreu... Hoje faz dezoito anos que ela foi morar com Deus... O moço só me salvou... Não fez nada demais!
- E como é que eu posso acreditar nessa história?
- Oxe, e o senhor não tá vendo ela toda enfaixada?
- Não se meta que a minha prosa não é com você, seu cabra!
- Oxente, painho, o senhor não ta vendo? Tô cheia de dor e toda enfaixada!
- Tá bem... Então minha fia está entregue, você pode se retirar!
- Será que não tinha como o senhor me dá um copo d’água? É que minha garganta tá seca que ta danada! Andamos mais de doze quilômetros por essas estradas...
- Painho, deixe ele dormir aqui hoje, vá?
- Dormir? Nem pensar!
- Mas painho, já tá tarde para o coitado voltar pra Palmeira... É noite de lua cheia. O senhor mesmo não disse que em noite de lua cheia o lobisomem aparece pra pegar os condenado que anda por aí vagando sozinho?
- Disse!
- Não disse que ele pega e estraçalha a pessoa em mais de mil pedaços?
- Disse!
- Não disse que andar por aí à noite, nesses dias, é entregar a alma ao Diabo?
- Disse!
- Pois então, painho! O senhor ia gostar que um fio seu fosse expulso assim, em noite de lua, se tivesse na casa de qualquer pessoa?
- Hum... É, não ia não... Tá bom... Ele pode ficar... Mas só estou fazendo isso, porque gostaria que alguém também fizesse o mesmo por um fio meu...
- Muito obrigado.
- Mas tem uma coisa! O Senhor não vai dormir em casa, vai dormir é lá no celeiro... Junto com os cavalos!
- Mas painho!
- É isso ou nada!
- Eu aceito! E lhe agradeço pela acolhida! Muito obrigado!
- Não preciso de agradecimento, agora entre pra dentro que eu quero ter dois dedos de prosa com você enquanto Erlinda prepara a janta...
Na mesa da cozinha, enquanto todos ainda jantavam, o Velho pai de Erlinda interpelava Jacinto com questões.
- Eu gosto de saber de tudo de qualquer pessoa que entra na minha casa, não sabe? Sendo assim, eu vou lhe fazer um questinário e o senhor ponha-se a respondê-lo quando for o caso, ouviu bem, seu Jacinto?
- Ouvi sim senhor, pode perguntar.
- O Senhor trabalha?
- Trabalho sim, senhor.
- Com o quê?
- Trabalho no sítio que meu pai tem, perto de Palmeira dos Indios.
- Bom, muito bom...
- Tá acostumado com a lida?
- Tô sim senhor!
- Bom... Muito Bom...Já esteve na capital?
- Estive não senhor...
- Tá interessado na minha fia?
- Oxe... Tô não senhor! Eu só salvei ela do acidente, foi só isso mesmo! Tem mais nada não!
- Hum... Bom... Muito bom... Uma ultima pergunta... Quem é a sua família?
- Minha família é a dos Soares!
- Dos Soares? (gritando)
- Oxe, é sim senhor! E é mode o quê esse avexamento todo?
- Você é dos Soares?
- Sou sim, nascido, registrado e carimbado! Jacinto Soares!
- Ponha-se daqui pra fora!
- O que é isso, painho?
- Mas que é isso, homi? Tá com o capeta no couro?
- Capeta? Capeta é o apelido que dou à minha escopeta! E você vai sentir o calor do cano dela no seu rabo, se não se retirar da minha casa nesse instante!
- Mas mode o quê, homi? Que foi que eu fiz?
- Você não, a sua família... Essa raça do demônio! Roubou quase tudo que nós tinha de terra! Desde o meu tetra-avô que a minha família é perseguida pelos Soares! E eu procuro essa casta de amundiçado, desde que meu pai foi morto nessa rixa! E agora que eu encontrei um, não vou deixar escapar! Levante-se!
Jacinto levantou-se e o velho colocou o cano da arma na testa dele dizendo:
- Prepare-se pra morrer, seu desgraçado!
- Palhares! Eu disse Palhares!
- O que?
- Eu não disse que era dos Soares, eu sou é dos Palhares!
- Está mentindo pra mim, filho da gota serena?
- Tô não! O Senhor é que ouviu errado! Tô aqui dizendo há mais de meia hora que eu sou é dos Palhares! Nascido, registrado e carimbado! Jacinto Palhares! O senhor é confundiu as idéias!
- Tá querendo me enganar, não é? Mas eu não sou môco, não! Ouvi muito bem você dizer Soares!
- Oxente, disse não, painho! Ele disse foi Palhares mesmo!
- Disse nada!
- Disse sim, eu ouvi, o senhor é que ta môco mesmo... Anda mal da audição! Vai matar um inocente!
- O quê?
- Com todo respeito, painho, mas o senhor já tem quase setenta anos e quando a gente fica velho, nada funciona mais direito! O Senhor mesmo foi quem me disse!
- Ninguém tá querendo lhe fazer de besta não! O que eu disse foi Palhares!
- Foi, painho, ele disse Palhares!
- E se o senhor quiser, eu vou a minha casa agora e lhe trago a certidão! É só uma semelhança com o nome que o senhor tem na cabeça! Fora isso não é nada mais não! O senhor quer que eu vá buscar a certidão?
- Não! Você tá querendo é me enrolar, seu besta!
- Oxe, to não, homi! Eu to querendo é lhe ajudar... Se matar um Palhares vai criar outra rixa... E aí não vai ter mais paz na sua vida! Além de ter matado um homem inocente, com o sobrenome errado e que não tem nada a ver com a sua gente!
- Está certo! Mas só vou lhe sortar mode quê eu tô na dúvida se você disse ou não disse Soares! Mas isso não fica assim não! Vou lhe dar um tempo pra me trazer a certidão e se não trouxer, eu vou virar esse sertão de cabeça pra baixo atrás de você, ouviu bem, seu peste?
- Ouvi sim senhor, pode deixar que eu lhe trago o documento provando que eu sou Palhares!
- Pois amanhã eu vou lhe esperar sentando ali, na varanda com a minha escopeta nas mãos! Vou cuspir no chão e quando o cuspe secar, se você inda não tiver voltado, eu vou lhe procurar até debaixo das barbas do capeta! E eu lhe acho! Ah, se acho! Ou não me chamo Josenildo Siqueira, o homem mais valente e temido de todo esse sertão! E se duvida, pode perguntar! Já matei gente até de susto! Só porque pisquei um olho! Agora vá simbora... Se ajeite no celeiro... Pra forasteiro sem nome não tem comida mais não! E amanhã cedinho, quero o senhor partindo... Porque quando eu levantar, eu vou logo é cuspir no chão!
- Sim senhor... Com sua licença!
- Já vai tarde!
(continua...)
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